Excepcionalismo e arrogância
É uma brincadeira comum no mercado afirmar que a taxa de câmbio foi criada para humilhar economistas. Por trás deste comentário, reside a premissa de que em meio a tanta complexidade não há modelos ou pessoas consideradas boas o suficiente para fazer tais previsões com consistência.
Esta última "pernada" de alta vista nos EUA -- esta que se iniciou no fim de outubro/2023 e que dura até hoje -- foi extremamente cruel com os estrategistas de mercado. Pessoas como o Mike Wilson (Morgan Stanley), Marko Kolonavic (JP Morgan) e muitos outros foram humilhados na mídia financeira.
Vendedores a descoberto foram atropelados. Aquele que "peitou" o mercado, ou "morreu" ou terá que passar um longo período (quem sabe anos) para se recuperar.
Eventos similares ao ocorrido são raros. O S&P 500 emplacou 16 semanas de alta em um intervalo de 18 semanas. Não à toa, surgiram comparações com a época frenética de 1999/2000. Um período em que o FED -- preocupado com o "bug do milênio", injetou liquidez e provocou uma bolha no mercado de ações. Naquela época, "gênios" de mercado como Julian Robertson, George Soros, Stanley Druckenmiller foram humilhados pelo mercado como se fossem novatos. Falo aqui do fundador da Tiger Management que foi forçado a abandonar sua atividade após perdas naquele ciclo. Falo também da dupla que ficou conhecida por quebrar o banco da Inglaterra em 1992. O mercado não respeita currículo algum.
Por muito tempo falei por aqui que havia um processo de LATINIZAÇÃO dos EUA. Embora esta expressão -- que tomei emprestada do professor Luigi Zingales (Universidade de Chicago) -- ainda carregue algum peso e faça sentido em um horizonte de tempo mais longo, o ZEITGEIST (espírito do tempo) está muito mais para o EXCEPCIONALISMO dos EUA.
Esta expressão, ainda que seja bonita, é extremamente arrogante. Os Estados Unidos -- ainda que excepcionais no quesito inovação tecnológica e na disseminação de sua cultura através da música e do cinema -- vivem hoje uma época completamente distinta daquela vista no fim dos anos 90. O país hoje tem uma dívida gigante que cresce a um ritmo de 1 trilhão de dólares a cada 100 dias. Imagine qual será o tamanho da dívida dos EUA em 2030, se nada for feito para reverter a tendência atual.
Por enquanto, todos sorriem e curtem a festa. Por trás desse conforto, a premissa de continuidade de um conceito conhecido que atende pelo nome de "DOLLAR SMILE" (Uma curva em formato de sorriso em que o dólar americano tende a se valorizar tanto em períodos de incerteza assim como em períodos de prosperidade.
Se existe algo realmente EXCEPCIONAL nos EUA é a capacidade de ser o emissor da reserva de valor global (o dólar). Enquanto os agentes globais atuarem de forma a confirmar a tese do "dollar smile", os EUA continuarão a ser considerados excepcionais.
Surgiu uma guerra em algum lugar do mundo, compre "treasuries"! Chegou-se a um acordo de paz, compre o Nasdaq! Para se fazer isso, não basta ter VISA. É necessário ter dólar americano em conta corrente. Assim, o colosso americano vem engordando ao longo de anos, sugando a liquidez global através de um grosso canudo conforme descrito por Brent Johnson em sua teoria do "Milk Shake".
Mas o mundo mudou. Nunca na história global existiu um país como a China. Um país que registra um saldo comercial de aproximadamente 75 bilhões de dólares por mês. Grande parte deste superávit chinês é oriundo de um mega déficit comercial dos EUA. Os americanos hoje carregam não só um enorme déficit fiscal, mas também um enorme déficit comercial. Durante a pandemia, uma das grandes surpresas foi a revelação da dependência dos EUA em relação a produtos farmacêuticos básicos oriundos da China. Não estou falando aqui de opióides, mas sim de produtos básicos como antibióticos.
O que é curioso em meio a tudo isso é como a mídia financeira norte-americana se refere a China. Se tem um tema que une democratas e republicanos é o sentimento de que é necessário coibir o crescimento econômico chinês. A China é demonizada diariamente na mídia financeira americana. Seu líder é chamado de autoritário. Suas ações são chamadas de "uninvestible". Sua meta de crescimento de PIB -- meta de 5% anunciada nesta noite -- é chamada de fictícia.
Com tudo isso, a longa parceria EUA - CHINA, chamada por muitos de "CHIMERICA", ainda pulsa. Empresas como a Apple, a Tesla, a Starbucks, a Nike, e muitas outras ainda contam com o consumidor chinês por boa parte de suas vendas.
A verdade é que os dólares enviados pelos americanos para o resto do mundo (inclusive para a China) continuam sendo "reciclados" no próprio EUA. Na segunda-feira, compartilhei este gráfico que mostra o quanto os investidores estrangeiros estão alocados em ações norte-americanas.
De acordo com um relatório que mostra a posição líquida dos investidores estrangeiros nos EUA (refiro-me a NIIP publicada pela BEA), os investidores estrangeiros possuem uma posição líquida de aproximadamente 13 trilhões de dólares em ações listadas nos EUA. Este valor corresponde a aproximadamente 25% do valor de mercado de todas as ações listadas nos EUA (algo próximo a 50 trilhões de dólares).
Se os EUA fossem uma empresa, seu líder certamente aconselharia seus funcionários (a população e a mídia americana) a atuarem de forma mais discreta (não utilizando adjetivos como "excepcionalismo" e outros) e com mais respeito aos seus clientes (parceiros comerciais).
Marink Martins